Um desses Gélidos Sábados à Noite (um miniconto)

“Olhando teus olhos numa nevasca de sábado à noite, em alguma rua sem charme de luzes amarelas numa avenida de uma pequena cidade… Eu enxergava os seus olhos, grandes olhos castanhos, que repentinamente me cortavam o coração, um tom tropical e quente numa gélida noite de sábado; e a tua pele, essa tua pele morena e suave, tão deliciosa eu tocava, e o teu suor, teu suor tão doce e perfumado eu sugava; Naquele quarto, acima de todos os outros, onde dividimos sorrisos, gemidos, mãos, lábios e sensações tão profundas que começavam antes de nos tocarmos. Desde então já sabíamos que isso permaneceria em nossa história para muito além daquele instante: Um diante do outro, silenciosos, cansados, deitados; nós apenas nos encarávamos, enquanto a neve levemente caia ao lado de fora em mais um desses gélidos sábados a noite.”

Era o que estava escrito na carta que hoje tinha cheiro de escrivaninha e que Rachel recebera quase 30 anos atrás. Agora lendo-a novamente, após 3 anos sem pôr os olhos sobre aquela caligrafia e aquelas palavras ela sentou-se e respirou fundo, sentia o calor subir-lhe as faces e também à partes de seu corpo que sequer precisam ser nomeadas.

Ela fechou longamente os olhos e respirou profunda. Abrindo-os, mirava cegamente as paredes de seu escritório enquanto sua mente, por outro lado, mergulhava naquele dia que ressoava na memoria e fazia-lhe quase tremer de desejo. Parecia-lhe que quanto mais distantes estivessem mais ela iria querer revê-lo. Adverso a nossos desejos entretanto, o tempo não se importa com seus habitantes e nem as escolhas que tomamos tornam-se as terras onde repousam nossos corações, ainda assim são onde nós repousamos, e após tanto tempo sob o julgo de laços apartados e compromissos que lhes transcendiam as escolhas (pois é isso o que fazem os juramentos, a teimosia e o orgulho) eles já não mais podiam se encontrar; “não deveríamos sequer nos falar” ela pensou “embora eu deseje isso mais que tudo”. Em sua mente entendia bem — ainda que com todas as desculpas racionais para fazer o contrario — a verdadeira razão para que quisesse tão profundamente reatar o contato.

A mão direita passeava-lhe as coxas e a respiração era ofegante enquanto lembrava-se mais uma vez do calor, do cheiro e da respiração daquela noite, então, uma batida surgiu a porta apagando tudo e trazendo-a de volta ao escritório

– Amor você tá ai?

Ela êxitou, sentia-se culpada ao mesmo que irritada pela interrupção.

– Amor?

– Sim, já vou.

– Tudo bem, é só pra avisar que estou saindo, o pessoal vai me esperar no escritório se demorar — o marido deu uma pausa, esperava ouvir os passos da esposa se aproximando — Eu vou de metrô, hoje é dia sem carro… tudo bem com você?

– Tá sim, tô ótima — disse ela imóvel mirando a porta.

– Tudo bem então — Sem resposta ele despediu-se avisando que estaria de volta as 19:00.

-Aham — concordou ela inaudível, movendo a vista para mais uma vez repousá-la sobre a carta e dai seguir à memória para reencontrar o laço invisível entre as palavras e a evocação daquele passado cujas impressões foram tão firmes que podiam torna-lo tão real quanto o próprio presente. Mas ela já não mais sentia, já não era mais capaz de mergulhar tão fundo em sua memória. Ela já não mais lhe absorvia os sentidos. A interrupção como uma faca rompera o laço e quebrara o encanto. Ela respirou com pesar, beijou a carta e a repôs na gaveta.

— Marcelo Jatobá de A. Jr.

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